Em um lar convencional, um casal tem um filho.
É um lar estruturado.
Uma avó e uma tia solteirona cuidam da casa e do menino enquanto os pais trabalham fora.
Moram em um bairro de periferia na maior capital brasileira e são senhoras convencionais, a avó e a tia.
Acrescentemos um pouco de suspense: nesta família, o pai é policial.
Estamos em uma cidade enorme, a maior da América do Sul, a criminalidade é alta.
A avó e a tia andam de orelha em pé, escutam rádio quando não estão grudadas a suas novelas e noticiários pela TV. Pelo rádio ouvem as notícias da região onde o provedor da casa costuma atuar.
É uma casa conectada, o menino vive no vídeo-game.
Orações e temor pela vida do rapaz que nunca se sabe se retorna de uma campanha. O grupamento ao qual pertence é de choque. Contato direto e diário com o perigo.
O menino cresce vendo a avó e a tia estalarem os dedos ante cada informação de confronto entre policiais e bandidos.
A insegurança é constante.
A mãe? A mãe pode ser secretária, ou trabalhar em um banco, mas não, vamos ao ingrediente improvável, façamos esta mãe policial, também, policial militar, talvez...
A criança, o menino desta família cresce centro aos cuidados de todos, não pode isso ou aquilo, as corriqueiras liberdades de anônimo, não pode!
É estimulado a ser safo, tem coisas que aprende sobre segurança pessoal que às outras crianças não é dado o conhecimento.
Tempos modernos: é visado -cada vez mais - familiares de policiais, quando identificadas podem sofrer represálias. Não dê mole!
E a tia e a avó, cada vez mais neuróticas.
Realistas?
O principal programa de TV assistido pelas mulheres formadoras da criança é o programa que vai lá, que mostra o olho do furação, se houver horror na porta da cadeia, crime, sujeira, a equipe de assistentes levanta e o apresentador potencializa. Ibope!
Deu audiência, deu reprise. As cogitações sensacionalistas são indicadas pela produção e o apresentador é um ator ao gosto popular, apresenta, repete, frisa, repisa.
Tudo estudado para fritar os nervos do telespectador.
Programa apresentado que não recebe ligação ou e-mail de fanático dizendo que chorou ao ver a investigação que a reportagem fez, seguindo os passos que a criança deu antes de ser violada e morta pelo tio, não é comemorado nem considerado eficiente pelo apresentador, seus focas e produção.
A ordem é quanto pior melhor.
Botar para quebrar.
Na casa do casal policial o menino cresce alterado, não tarda a apresentar uma disfunção de saúde, coisa banal, corriqueira com esta alimentação de hoje em dia, genética, coisas da vida...
Entra na adolescência. Fase difícil. A tia e a avó neurotizadas, os pais em constante vigilância, totalmente paranoicos. Não dá mais para separar vida privada da profissional. E alguém que trabalha nesta área, consegue?
Nada naquele lar que está estruturado para a normalidade, corre na normalidade, especialmente a cabeça da tia e a avó, reféns que se tornaram do programa cuja cadência sincopada da voz do apresentador já é o principal nutriente das refeições da hora que seria da Ave Maria.
De olho na TV, de olhos arregalados, hipnotizadas e progressivamente insensibilizadas, as mulheres da casa do casal de policiais não vive mais uma vida, é uma quase vida.
A conexão não é divina, embora aparentemente creiam em Deus, é à outra força que acolhem, se deixaram fisgar e na suas mentes o mundo é caos.
É caos.
É caos, de olho no caos.
Foto:fiz na última Bienal de Artes no Ibirapuera, identificação da sala e artistas, na placa abaixo:
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